Crónica de Alexandre Honrado | Há tanta ideia por pensar Uma pequena homenagem a Vergílio Ferreira

[sg_popup id=”24045″ event=”onLoad”][/sg_popup]

Há tanta ideia por pensar
Uma pequena homenagem a Vergílio Ferreira

 

Só uma filosofia do impuro interpreta o impensável

O que seria de uma vida inteira se, vivendo-a, não pensássemos? Algum estranho equilíbrio nos levaria de uma à outra ponta, do nascer ao partir, enchendo parte de nós com a vã impossibilidade de sermos nós. Pensar, mesmo assim, não seria suficiente. Seria exigível a importância de saber como fazê-lo. E ao sedimento de todos os dias a que chamamos memória e que mais não é do que a soma do que mais se evidencia no que acumulamos, qualquer coisa teria de juntar-se para fazer algum sentido.

Não tendo memórias não temos visões nem alucinações. Ou ambições. E desprovidos dessas transcendências não temos importância diante de nós. Aquele nada que se movimenta no reflexo do espelho é este nada que se movimenta sem saber o que é um espelho, ou o movimento, um reflexo, um corpo, um fato completo, uma maquilhagem, um esgar.

Não há angústia mais cavada do que essa: perdermos a importância diante de nós mesmos.

Uma das doenças do nosso século é o Alzheimer, um dos tipos de Demência. As pessoas com Doença de Alzheimer tornam-se confusas e acabam por não reconhecer os próprios familiares e até a si mesmas quando colocadas frente a um espelho. Mas para que assim seja, não teremos de pensar o que é angústia (com ou sem enquadramento clínico) e construir em redor alguma coisa sólida, mesmo intangível, capaz de identificar o que nos perturba? Sem essa percepção, consciência ou pensamento, não há sequer lugar ao reconhecimento. Não se poderá falar de angústia. Não há corpo, nem espelho. Nem angústia. É a última etapa, um reduto, do vazio: o não pensar.

O nem sequer poder pensar-se que não se pensa, por opção.

Houve um tempo, não muito distante deste, o de agora, em que, pelo menos aparentemente, vivíamos rodeados de pensamento. Tínhamos connosco e citávamos ideólogos que sentíamos como nossos; nutríamos paixões, até insanas, quando nos cruzávamos com os filósofos. Enchíamos a boca nas tertúlias e referíamos, de um modo muito aceso, entre muitos outros, Platão, Nietzsche, Marx, Haeckel, Jaspers, Beauvoir, Arendt, Sartre, Deleuze ou Foucault como parentes muito próximos. Não seria talvez um tempo em que pensávamos muito; aceite-se com leveza que era apenas um tempo em que o pensamento nos rodeava, como o andorinhão o faz ao beiral em altura certa. Ele lá sabe que a primavera o acolherá e não tem calendário ou professor que lhe fale de fenomenologia, sabe lá ele o que é isso, aliás preocupante, dos fenómenos da consciência e coisas aderentes a essa, dominando, talvez paradoxalmente, a intuição pura.

 

Alexandre Honrado
Historiador

Partilhe o Artigo

Leia também